duas mulheres conversando sobre o que veem na tela de um computador

A difusão dos conceitos relacionados ao empreendedorismo inovador, aliada à dinâmica cada vez mais intensa de novas correntes de pensamento, tem contribuído para uma profusão de neologismos, a maioria infelizmente utilizada sem o devido respaldo teórico, e em consequência, de maneira tendente a equívocos.

É compreensível que a intensidade das trocas de informações demande interpretações e aplicações mais rápidas, mas esta não é uma justificativa plausível para que termos e conceitos surjam tão rapidamente, como desapareçam na mesma velocidade (por se tornarem rapidamente obsoletos) em eventos e fóruns de discussão relacionados à inovação e ao empreendedorismo.

Neste breve ensaio trazemos à discussão o conceito de ecossistema, uma evolução teórica dos sistemas locais de inovação, definidos por Ben-Ake Lundvall e assumidos por outros autores ‘neo schumpeterianos’ na década de 1970, e sucedidos por outros conceitos ligados à promoção da inovação localizada, como ‘Milieu Innovateur’, ‘clusters’ e arranjos e sistemas produtivos e inovativos locais.

Em sua gênese, o conceito de ecossistemas tem como base a teoria sistêmica, e, portanto, define conjuntos de partes interdependentes, que comungam um propósito único, e que promovem a retroalimentação que caracteriza o sistema como evolutivo.

Se tomarmos como exemplos os sistemas existentes no corpo humano, perceberemos que o propósito e a função definem os sistemas, e não as partes integrantes. Assim encontraremos sistemas circulatórios, respiratórios, digestivos. De maneira análoga, se tomarmos quaisquer outros exemplos de sistemas, não encontraremos referências às partes, mas às funções que exercem, como aliás define a literatura.

Há correntes contemporâneas de pensamento que imputam às startups a responsabilidade pela reconfiguração de cenários econômicos, os chamados ecossistemas. O conceito multiplica-se e tem sua presença obrigatória em discussões sobre empreendedorismo inovador, como um conceito aceito e ampliado dos sistemas. No entanto, para ser considerado um “ecossistema de startups”, deveria apresentar interdependência entre as empresas, incluindo um relevante fator de retroalimentação, o que seria logicamente inconcebível.

O mesmo não se pode dizer de um ecossistema inovativo ou de um ecossistema de negócios, em que os propósitos regem os conceitos. No primeiro, a interdependência é resultante do caráter interativo do processo inovador, e a retroalimentação ocorre pelo incremento na base de conhecimento empírico que, em conjunto com a evolução do conhecimento técnico-científico, contribui para a cumulatividade, um dos pilares do processo inovador. No segundo, a retroalimentação ocorre pelo surgimento de ‘spin-offs’ dentro da própria dinâmica, além de empresas entrantes e de investidores externos. 

Especificamente em relação aos ecossistemas inovadores, o caráter interativo e não-linear da inovação remete à teoria da complexidade, em que os eventos têm um alto grau não-determinístico, e que por isso não podem ser geridos por modelos lineares de gestão. O fato de que os ecossistêmicas são caóticos não significa, no entanto, que não possam ser conduzidos para propósitos comuns, um conceito bem diferente, ressalte-se, de metas pré-estabelecidas. Os condutores de um sistema caótico têm necessariamente a compreensão da dinâmica evolutiva do ecossistema, e são chamados pela teoria da complexidade de “atratores caóticos”. Os atratores não delimitam rotas nem estabelecem metas, mas norteiam o comportamento das redes dentro das dinâmicas em que atuam.

Podemos identificar atratores atuando em diversas etapas específicas das trajetórias inovadoras, como agentes de fomento, influenciadores digitais, ‘coaches’, conselheiros e mentores de startups. Os mentores de negócios diferem-se por considerarem, em suas ações, os impactos sistêmicos decorrentes.

A literatura recente sobre startups coloca a validação do modelo de negócios, a escalabilidade e a percepção de receitas recorrentes como requisitos para classificar uma empresa nascente como potencial negócio sustentável. Esta visão sem dúvida é válida para o incentivo e difusão de novos empreendimentos, mas se assemelha, se tomarmos os estudos sobre teoria dos jogos do professor John Nash, aos primeiros movimentos dos jogos e suas possíveis e imediatas respostas.

O mentor de negócios, por seu turno, necessita conhecer não apenas os primeiros impactos das ações empreendedoras sobre o ecossistema, mas toda a reorganização resultante de qualquer negócio realizado por empresas em quaisquer etapas de sua trajetória. Nesse prisma, a cumulatividade de conhecimentos teóricos e empíricos constitui-se requisito para o êxito do processo de mentoria de negócios. O grau de cumulatividade de conhecimentos teóricos e empíricos é muitas vezes confundido com a idade do mentor, justificando argumentos de que há relação direta entre o tempo de vida e a qualidade da mentoria.

Embora a questão etária muitas vezes signifique maior oportunidade de aquisição de conhecimentos, esta não é uma questão sine qua nom para a qualificação de mentores de negócios. Percebe-se, no entanto, que negócios já estabelecidos normalmente demandam mentores mais experientes, com larga experiência na gestão de negócios próprios e de terceiros, além de conhecimento sobre os segmentos de mercado em que atuam. Nessas situações, os mentores de negócios são preferidos aos mentores de pré-negócios, devido à maior amplitude de percepção na dinâmica de mercado, resultante de suas competências e de ferramentas informáticas que dão suporte, como plataformas de inteligência competitiva.

Por outro lado, as diferentes trajetórias que qualificam os mentores de negócios são construídas por situações especiais, em que metodologias convencionais e inovadoras são mescladas a iniciativas individuais, que em consequência formam um manancial de métodos distintos. A resultante profusão de soluções torna claro que não existe uma metodologia única e linear, como a denominação popular “receita de bolo”, para a atividade de mentoria. No entanto, principalmente quando um grupo de mentores atua sob um mesmo propósito, há necessidade de utilização de processos metodológicos básicos e uniformes, para que se fortaleça a identidade do grupo, e consequentemente seu reconhecimento por parte dos potenciais clientes.

Neste sentido, a maiêutica socrática revela-se uma importante alternativa metodológica. O método consiste na condução do processo por meio de perguntas perspicazes, que levem o mentorado a construir seus próprios cursos de ação. Durante o processo, tanto o mentor quanto o mentorado experimentam efeitos que redirecionam suas expectativas iniciais, construindo um novo propósito. Obviamente os resultados serão mais próximos do êxito quanto maior for a bagagem teórica e empírica do mentor. Isso possibilitará maior conhecimento ecossistêmico, aliada à sua capacidade de interação com o mentorado.

Laércio Matos é Diretor de Relações Internacionais da ABMEN, Mentor de Negócios Certificado PMBM e

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